domingo, maio 01, 2005

Desde cedo

Vive à margem desde cedo,
desprezado por aí,
e perambula,
flanelinha, baleiro, engraxate,
pelotiqueiro de sinal,
e não se encabula de pedir um trocado,
e não corre quando canta o pau,
fica de frente,
que só morre de medo de ter medo,
pois não cabe medo nessa rinha,
nesse embate permanente;
mais dia, menos dia,
comete algum deslize
e se mete numa fria,
e foge e se apinha,
se aninha entre irmãs e irmãos
sob viadutos e marquises,
e a estação não faz diferença não,
e se envolve em aniagem
e descansa nas linhas do Estatuto,
que ouviu falar
dos direitos da criança e do adolescente,
e faz bobagem, sacanagem, acarinha,
que o corpo a corpo esquenta,
a alma alenta
e a fome não atenta tanto,
ainda por cima,
troveja, chove e venta,
e há muitos ratos, gatos e pratos,
e é escasso o alimento,
e o alento é uma história
que nunca se viu
em nenhuma obra infantil,
e joga peteca
só pra não deixá-la cair,
no jogo da memória,
sobras do jornal,
da seção policial,
que não tem outro exemplo pra seguir;
brinca com "bolas" e "bonecas"
que não fabricou
nenhuma fábrica de brinquedo,
e entra de sola no sapateiro,
"passa nele o serol"
e descola uma cola,
que esse ofício, crime, vício,
não se aprende na escola,
e solta fogos de artifício,
o que não é difícil,
basta ter olhos pra ser olheiro,
ter pernas pra ser avião,
pra ser soldado,
cinco dedos em cada mão,
e o dinheiro escorre desvairado,
avermelhado feito sangue;
“mas,
não se zangue comigo,
doutor,
porque vou lhe pedir
anel, cordão e carteira,
é que o mano foi em cana,
a mana tá prenha
e sem cliente,
e a gente faz a feira com essa grana
e tira o pó da prateleira,
e o que sobra a mãe me cobra
que do porre não quer sair,
aí,
não socorre minha parceira,
que nem bem menstruou
e já está prestes a parir.