terça-feira, agosto 02, 2005

Rio e souRio

Rio e souRio,
meu Rio
de Janeiro nas veias
o ano inteiro,
Rio
que me incendeia
com esse inflamado sorriso
que sorri o Pão de Açúcar,
que me faz sorrir tanto!,
de siso a siso!,
com esse santo sorriso Corcovado
que não me deixa fundir a cuca;
Rio e souRio
com esse meu Rio
que se choca,
mas não se rebela ou maloca,
barraco ou favela,
desemboca noutra piada,
a risada carioca,
Rio que sabe
que sorrir é preciso,
que o riso sempre cabe,
Rio que empina,
em alto e bom som,
pipas de sorrisos
da feira de Acari à Cobal do Leblon,
com parada no Bar da Maria,
que a cerveja está sempre gelada
e a gente de lá,
quase toda!,
é gente muito fina;
Rio que sorri em Arcos,
marco da Lapa,
que sorri na sé do Outeiro,
que do sorriso é a Glória,
e, no mapa do sorriso,
sorri história no Paço Imperial,
e sorri de rombo e de tombo
como sorriu a República
do escorregão da Ilha Fiscal,
mas a res publica
ainda vai indo de mão em mão!,
mas o Rio
dá o sorriso por cima,
quem já deu
sorrisos secos e molhados
na velha Primeiro de Março,
dentifrício da Granado,
saçaricou sorrisos
na porta da Colombo,
e foi um assombro,
não desanima,
pois até esboçou um sorriso,
"ilustre passageiro,
o belo tipo faceiro
que o senhor tem ao seu lado",
graças ao Rhum Chreosotado;
e o Rio
corre sorrindo
esse sorriso trottoir
no cais da Praça Mauá,
cujo ofício
apraz tanto o marujo;
sorri à beira-mar
esse sorriso fio-dental
que alinha belas meninas,
afinal,
o que abunda não prejudica,
e dá gosto sorrir assim!,
até pagando imposto;
e o Rio sorri Carnaval,
cuíca, tarol, tamborim,
e faz Chacrinha pra sorrir
e, pelas ruas,
buzina sorrisos e não desafina,
e desata a sorrir
o abundante sorriso-mulata;
noutro instante,
trata de sorrir cheio de bossa,
é o sorriso do seu Beco mais famoso,
que finta na fossa!,
assim é o Rio,
quanto mais Blecaute,
mais Risadinha,
que não há nocaute
que lhe derrube o sorriso;
e o Rio sorri,
emocionado,
os hinos de seus times,
um baita sorriso Lamartine,
e sorri boêmio, abstêmio
ou de Palpite Infeliz,
"Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
quem sempre sorriram muito bem";
e o meu Rio
desfila sorrisos pela Sapucaí,
sorri ao léu pelas calçadas
da Princesinha do Mar,
aos pés do Boréu,
nos braços de Madureira,
e a Praça da Bandeira fica cheia,
uma praia de sorrisos
onde sorri tatuí, sardinha, baleia,
arraia, corvina, muçum,
inda bem
que Oxum sorri e nos esteia,
e o Rio agradece
sorrindo preces com muita fé
na escadaria da Penha;
depois,
o Rio
se embrenha com a galé
pelo meio da Central do Brasil
e sorri na marra,
"Cidade Maravilhosa
cheia de sorrisos mil",
e um mar de sorrisos
vem lá do Recreio,
passa pela Barra,
São Conrado,
Ipanema,
somos banhados
por um Atlântico poema,
mas não pára por aí!,
que o Rio romântico
ainda sorri Baía da Guanabara;
e, de repente,
aquele sorriso aviso:
"sorrisos ao alto",
e assalta a gente
um sorriso banguela
no asfalto da Cancela,
e é meio-dia e quinta-feira,
e sorri assim
dá até tremedeira,
e não quero morrer de rir,
por favor,
São Cristóvão,
guia esse nosso sorriso
que ninguém
o está guiando por aqui!;
mas,
o Rio vai à forra
e com muito alarde
jorra um Biggs sorriso
que sorri da Scotland Yard,
que não acontece só por aqui!,
depois,
sorri bingo, bicho, sena, quina
sorri à farta
o sorriso jogo de cartas
em praças, esquinas e edifícios,
que é fogo
esse vício de sorrir!;
e o Rio
sorri na rua Jogo da Bola,
que também rola
nua e gostosa no Maracanã,
ah!,
meu Rio,
como é bom
sentir sua tarde sorriso
me sorrindo poesia,
ouvir esse bom-dia
que me sorri sua manhã,
como é bom
esse sorriso de amor
que seus lábios enfeita
depois da boemia
quando você se deita
nos braços do Redentor!

Subterfúgio

Pelo tempo
é tecido um deserto repleto de medo,
o medo da desilusão;
retidos na rede,
os dias pacatos,
as quatro paredes,
e mulher, filhos, os filhos dos filhos,
e tudo exato qual pulso morto;
tamanha a exatidão,
que vive o peito
o conforto desse subterfúgio,
e se acanha,
não se assanha mais,
nada além de discreta emoção,
refúgio com jeito de reta final,
e pode,
muito bem,
ser cedo ainda,
sabe-se lá quando ele finda?,
quem sabe,
mal chegou ao meio?,
mas o receio
não tolera os riscos das feridas,
nem da vida as grandes quimeras,
proíbe o sangue
de sentir novos veios,
hipnotiza os vasos,
o ocaso se antecipa,
imuniza contra mágoas,
mas,
em contrapartida,
nos deságua nas artérias do cotidiano,
os fatos sem fogo,
o jogo frio,
sem arrepios,
sem tesão,
maldito zero a zero,
sem os gritos,
os aflitos
mas vivos reclamos
contra perdas e danos;
depois da festa,
resta esse conta-corrente
que não tem passivo,
nem o ardente ativo da paixão!

Sétimo dia

A luz do dia vaza o vitral
e clareia crentes,
fiéis
e santos
que se aquietam silentes
à sombra da cruz
pelos cantos da catedral,
e pelas velhas frestas
de telhas partidas
passam de viés
finitos e finos pingos de vida
e um vento aflito
estremece a chama
que brota das velas
presas aos castiçais,
diante de tudo isso,
contritos rezam,
choram,
imploram,
temem os mortais,
e o corpo morto
é consumido na sepultura,
sua transitória clausura
tecida em granito,
enquanto espera,
escuta o grito inaudível
de um ramo de flores lilás.

Natureza-morta

De repente,
frente a frente,
cara a cara,
de pé no meio da sala,
logo após um jantar comum,
sem me dar sequer uma chance,
me disse sem rodeio
que era hora de acertar as contas,
tudo estava acabado entre nós,
ela ia embora
e as malas já estavam prontas;
não sorriu,
pra não me dar motivo pra sentir rancor;
não chorou,
pra não me dar razão pra sentir ternura;
me olhou e não me viu;
trazia no olhar
friúra de chofer de coletivo
que vê pelo retrovisor
o passageiro correndo desesperado
pra não perder a condução
e se adianta um segundo,
e, antes que ele a alcance,
dá a partida;
e fiquei no ponto,
tonto,
olhando o nada
como se fosse tudo na vida,
sentindo um gosto esquisito,
um sabor aflito
que eu não sabia que sentia
quem não vai mais aonde queria ir
e não sabe o que fazer,
sentindo um mal-estar estranho
para o qual,
sem saber a razão,
tinha certeza de que não havia elixir,
sentindo uma intensa vergonha,
como se o mundo todo estivesse ali
vendo meu amor fracassado;
não consegui dar um passo,
uma força mais forte
fizera cortes em mim
e meu corpo estava separado em pedaços,
e o sangue que saiu da ferida aberta no peito
não tinha cor definida,
me encheu um vazio absurdo
e me fez vagar no ar de um jeito bisonho,
como num sonho ruim;
fiquei louco porque não era surdo
e ouvi o que não queria ouvir;
não consegui dizer sequer uma palavra,
como se não houvesse no dicionário
uma só palavra adequada;
cometi um grave pecado,
não ter rezado nenhuma prece,
por achar que as orações
ensinadas pelos livros sagrados
não passavam de refugo inservível;
minhas mãos,
sob o jugo de um poder invisível,
procuraram ao léu bolsos imaginários
pra se esconder,
e não conseguiram encontrar;
e ela,
qual pintor
que não dá valor à natureza-morta
qua acabou de criar,
que joga fora pincel e aquarelas,
saiu e bateu a porta!

Ledo engano!

Que ledo engano!,
a palavra não é fria nem vazia
se alumia o pensamento,
se nos aquece a fala
se exala sentimento,
se nos estremece
quando desafia crenças, credos, medos,
a palavra não é fria nem vazia
quando nos deixa ufanos,
e tanto,
que a gente esquece
perdas e danos
quando ela tremula na alma
qual bandeira ao vento,
soberba no mastro,
quando a palavra
desencrava a emoção,
desentala o trauma,
a boca não se cala,
faz ir a voz em correria,
o que estava no peito,
bem lá no fundo,
andava por ali
e a gente nem sabia,
ganha volume de oceano
e toma conta de tudo,
e por onde passa
deixa seu rastro,
marcas de inundação,
e não conhece o mundo
forte, barricada ou barreira
capaz de contê-la,
sequer a mordaça da morte
pode detê-la,
calar o amante ou o herói,
bóia-fria, prostituta ou ladrão,
ou qualquer outro irmão
que se levante do cotidiano
e dela lance mão
pra gritar a dor que dói lá dentro,
que rói como cicuta,
ou aquele amor
que, do centro do coração,
vem pronto
pra lutar qualquer luta.

É sempre o fim

Vamos nos perder nesse acaso,
quem sabe,
achar um caso de amor?!,
vamos nos perder indefinidamente,
procurar amar
mais do que seria capaz
o amor mais insensato,
e, dos insensatos,
o mais insolente,
vamos nos perder entre mim e você,
cada um de nós
à procura de nós dois,
de fato,
ninguém perde nada
procurando assim,
depois,
se for amor,
que o amor se acabe
de tanto amar
ou se acabe com a gente,
se não for amor,
que seja uma aventura
e que se acabe
quando acabar a loucura,
mas,
vamos nos perder
me buscando em você,
procurando você em mim,
e sem pensar no depois,
afinal,
seja ele qual for,
é sempre o fim!

Faz de mim o que bem quer

Como um escroque indecente,
um arrivista sem escrúpulo,
com um toque manhoso,
ganhei o beijo de sua boca sedenta
e o sabor de menta de seu chiclete,
a goma tentava mascarar
o aroma do malte e do lúpulo
e disfarçar seu pileque,
como um moleque abandonado,
que sob vistas indiferentes
vira pivete audacioso,
simulei o choque
e afanei um abraço ardente
de seus braços fragilizados e pedintes
que abraçavam chorosamente
aquele recente vazio,
como um bandido feroz
e algoz impiedoso,
sob a mira do meu desejo
e o fogo de outros tragos,
tomei conta do jogo
e raptei a fêmea carente de afago e afeto,
com requinte,
satisfiz caprichos e desvarios,
fiz dela o objeto do meu prazer,
como um vadio safado e sem pudor
que não teme fazer sofrer,
entrei com acinte
naquele peito recém-abandonado,
e pela porta da frente,
que havia ficado entreaberta,
e, a sangue-frio, cravei nele o amor,
na hora certa,
sem licença e aviso,
com aquela arrogância
de quem dispensa permissão
e aquela ilusão
do macho que se acha capaz
de dominar uma mulher,
me intitulei dono do seu coração,
mas não tardou o castigo,
submissa e sorrateira,
com aquele jeito manso
e a constância
de quem conhece o mister
de dar ao tempo
o tempo que for preciso,
o tempo que ele quiser,
levou a liça à sua maneira,
e fez comigo
bem mais do que fiz com ela,
lutou cada hora
sem trégua e descanso,
de cada légua,
venceu cada braça
com raça e com garra,
por fim,
acabou com minha farra,
e se tornou minha senhora,
agora,
a mulher
faz de mim o que bem quer!

Carta a meu Rei!

Meu Rei,
ah...
meu Rei,
sei que não te falei
das muitas dores do teu reino;
meu Rei,
ah...
meu Rei,
sei que não critiquei
os teus amores mais obscenos,
e foram tantos,
e por todos os cantos;
meu Rei,
ah...
meu Rei,
sei que não te passei
os sabores dos teus venenos;
meu Rei,
ah...
meu Rei,
eu sei que te poupei
dos rigores de dias não amenos;
de tudo isso,
meu Rei,
eu sei,
sei muito bem;
mas,
meu Rei,
que podia eu fazer?,
se sabia
que estavas cego e surdo,
se cotidianamente te via
distante e mudo,
se parecias alheio a tudo
todos os dias,
se te surpreendia sempre,
meu Rei,
distante e vago,
se te descobria sempre
ignorando os estragos,
agindo como se teu reino
fosse um manso,
um calmo lago
a refletir só os raios de luz;
mas,
meu Rei,
quero que saibas que me cansei
de carregar a nossa cruz,
de manter teus súditos
famintos e nus,
escravos sob a mira do teu arcabuz;
mas,
meu Rei,
quero que saibas que me cansei
de tanto pedir perdão
aos pés do Menino Jesus;
meu Rei,
ah...
meu Rei,
saiba,
também,
que por tudo
que sempre te dei,
pelo muito que te dediquei,
pelo absurdo que a ti paguei,
pelo tanto que diante de ti me curvei,
meu Rei,
nunca,
nunca mais,
jamais nos perdoarei!,
e,
para ser franco,
meu Rei,
botando o preto no branco,
te servi,
te bajulei,
me submeti,
me entreguei,
mas nunca,
nunca mesmo,
meu Rei,
eu te amei!,
quero que saibas,
“meu mui querido
e amado Rei”,
que assim sempre te chamei
porque assim fazia todo o reino,
mas te detestei,
te odiei todo o tempo,
senti desprezo,
nojo,
asco,
senti repulsa,
repugnância,
e muito,
muito mais,
e até vomitei,
vomitei sim,
e um vômito sem fim,
“meu mui querido
e amado Rei”,
com o fedor da tua ganância,
com a gosma infecta
que revestia a tua arrogância,
com o ranço da tua egoísta abundância,
com o fartum da tua insolente ignorância,
com o bodum da tua ignominiosa petulância;
mas um dia,
“meu mui querido
e amado Rei”,
quando estiveres dormindo
teu injusto sono
em teu quarto real,
ou estiveres exibindo
teu inexplicável cansaço
esparramdo em teu augusto trono,
ou estiveres gastando
todo esse teu inservível tempo
com as bobagens e tolices do Paço,
e fores vítima de teu próprio punhal,
e tiveres soberanamente sangrado,
e estiveres realmente morto,
“meu mui querido
e amado Rei”,
chorarei e lamentarei
suditamente sobre teu corpo,
e sabes a razão,
“meu mui querido
e amado Rei”?,
chorarei e lamentarei suditamente
porque é de praxe
chorar e lamentar assim
por El Rei morto!,
e mandarei,
“meu mui querido
e amado Rei”,
que se hasteiem a meio mastro
todas as bandeiras do teu reino,
ordenarei
que se toquem todos os clarins,
se rufem todos os tambores;
e sobre teu corpo,
“meu mui querido
e amado Rei”,
colocarei teu brasão,
tua bandeira,
tua espada,
teu escudo,
colocarei tudo,
todos os símbolos da tua coroação,
colocarei tua vida inteira,
e sabes a razão,
“meu mui querido
e amado Rei”?,
porque é de praxe
elogiar e glorificar
El Rei morto!,
mas,
“meu mui querido
e amado Rei”,
Rei morto,
Rei posto,
e, por isso,
te manterei exposto,
para que todos
pelo menos sintam o imenso gosto,
para que todos
tenham ao menos o magnífico prazer
de ver El Rei morto;
e quando os vermes,
“meu mui querido
e amado Rei”,
tiverem consumido tua epiderme,
tua derme,
toda a tua pele,
todas as tuas entranhas,
como fazem
com qualquer reles mortal,
e quando teus ossos
estiverem todos aparentes
e calcinados pela cal,
e quando o cheiro horroso
tiver humanamente findado
e todos de ti supremamente esquecidos,
pois libertados,
então te enterrarei
como os indigentes são sepultados,
mas,
mesmo assim,
depois de todo o teu completo fim,
“meu mui querido
e amado Rei”,
não me terei redimido
de todos os nossos pecados!

Querença

Quero amar
todos os teus amores;
quero matar
todos os teus desejos;
quero cantar
todas as tuas canções;
quero sugar
todos os teus tesões;
quero beijar
todos os teus beijos;
quero sanar
todas as tuas dores;
quero roer
todos os teus ossos;
quero ranger
todos os teus dentes;
quero sofrer
todos os teus sofrimentos;
quero vencer
todos os teus tormentos;
quero encher
todos os teus poentes;
quero moer
todos os teus remorsos;
quero partir
todas as tuas partidas;
quero sentir
todas as tuas iras;
quero dormir
todos os teus sonos;
quero banir
todos os teus donos;
quero ouvir
todas as tuas liras;
quero despir
todas as tuas medidas;
quero suprir
todas as tuas sortes;
quero viver
todas as tuas vidas;
quero fiar
todas as tuas chances;
quero jogar
todos os teus lances;
quero carpir
todas as tuas idas,
eu quero que seja assim;
e, por fim,
quero morrer
com a tua morte.

Esse dom

Esse dom é bom
e faz muito bem,
e só você tem,
flor,
esse dom de florir
a lapela de um dia
que de açoite se veste de noite,
esse dom de florir
uma bela madrugada
alumiada por um grande amor,
esse dom de florir
a apatia do teto
no dissabor da cela renhida,
esse dom de florir
um quarto forte,
resistente às agruras lá de fora,
esse dom de florir,
insitente e farto,
seja qual for a hora,
seja a do parto, seja a da morte,
esse dom de florir
o cinza concreto
de um beco que não tem saída,
esse dom de florir
solos doentes e mudos
num mundo surdo, absurdo e ranzinza,
esse dom de florir
um ser opaco e miúdo
num colo evanescente e seco,
esse dom de florir
um copo desolado
num fundo de poço esquecido,
esse dom de florir
um galho apático
de uma árvore indigente e triste,
esse dom de ter a medida certa
pra florir o dedo em riste
e a mão aberta, estendida,
esse dom de florir,
flor,
um instante raro
e um momento comum,
esse dom de florir
o de todo claro,
o enigmático
e o de todo escuro,
o puro e o maculado,
o lodo e o jardim,
esse dom de florir
o dito duro, sério,
e o chiste puro,
a lembrança do passado
e a esperança no futuro,
esse dom de florir
o bonito, o feio,
o melhor, o pior,
o suor do calor, o tremor do frio,
e o vazio, o incompleto e o cheio,
aparentemente repleto,
sem lugar pra mais nada,
esse dom de florir,
flor,
o medo e a coragem,
esse dom de florir,
flor,
a imagem,
esteja onde estiver,
no terreiro, na capela, na viela,
esse dom de florir,
flor,
palácio e morada singela,
riqueza e necessidade,
felicidade e mágoa,
que seu mister é florir,
e, pra florir você,
flor,
fiz buquê com outra flor,
a “última flor do Lácio”.

Nós dois, nós duas

Escalando nosssos ventres,
entre nossas montanhas
em você me assanho,
você se assanha em mim,
e essa ambígua escalada
nos permite querer um viver sem-fim,
sem clausura, sem limites,
somos mastros, somos velas,
pessoas soltas por sobre as alturas,
envoltas só em ventos de prazer,
ela é ele,
depois,
ele vira ela,
grita mais forte a metade sol,
mas dita o norte a metade lua,
e ainda mais se insinua a matilha,
meio-astro, meia-estrela,
deixando as metades de rastros
pelos dois lados da pista
que a trilha é mista,
mistas as entranhas
por debaixo do lençol,
tua sanha masculina
arrebanha a mulher,
e não se acanha
minha natureza feminina,
sempre pronta pro que der e vier,
e vice-versa,
quando se dispersa a senhora
e me torno senhor de você,
macho e fêmea
ao sabor das horas,
vontades gêmeas
que se encontram
com paixão e prazer!

Mais leve que o ar

Como sói acontecer,
fui um grande herói,
a um tempo só
Tarzan, Zorro, D'Artagnan,
vencia cobras e felinos
no peito, na força e na faca,
pelos morros, selvas,
rios da minha rua,
no terreno baldio
cavalgava meu alazão
e gritava: "saca!",
sacava sempre primeiro,
era o mais ligeiro,
e nunca errava,
o tiro era certeiro,
a lata da goiabada
era meu escudo,
o cabo de vassoura
minha espada,
e sob seu fio
ficava de joelhos
qualquer inimigo,
e batia continência o soldadinho de chumbo,
diante do espelho
desfilavam James Dean,
Elvis,
Alain Delon,
pose, topete e Bryllcream,
e as vizinhas,
misses, professoras e atrizes,
todas eram minhas,
apaixonadas e nuas caíam em meus braços
à sombra de algum lampião,
e nudez, paixão, prazer
era só imaginar,
sem tempo, dimensão,
sem limite,
e minha pipa,
convite ao infinito,
era mais leve que o ar.

Inocência: por que a roubamos de nós?

Agora,
com freqüência,
imerso em silêncio intenso,
penso horas a fio
e folheio alfarrábios
em busca da Inocência,
e a poeira da memória
quase não me deixa ler,
será que ainda descubro
por que a roubamos de nós?!;
mas já pude ver
quão hábil,
quão ágil era beijo
que beijávamos
com o rosto todo rubro,
se nos deixavam a sós
apenas por um segundo,
era profundo,
embora restrito aos lábios,
era um toque infinito
e tão leve,
tão breve;
já me lembrou o sorriso,
tão ingênuo quão bonito,
que sorria das carícias,
que era uma delícia
acariciar assim,
carinhos que não tinham fim,
mesmo durando um instante;
já me lembraram as mãos dadas
indo passo a passo,
entrelaçando os dedos,
suando nossos segredos,
denunciando emoções;
já recordei os abraços,
quando nossos corações
juntavam os compassos
e trocavam confidências,
pra que palavras?,
pra que conversas?,
se nossos olhos
não nos escondiam nada,
se nada mais era preciso
quando se encontravam;
pra que juras e promessas?!,
se nosso amor
era perenemente passageiro?!;
se não havia pecado,
se era imaculado o nosso amor,
pra que censura?!;
se nossas almas andavam nuas,
exibiam as vontades,
as minhas,
as suas,
pra que vergonha?!,
pra que pudor?!;
se nosso ledo querer
era tão terno,
e era instantaneamente eterno,
por que ter medo?!;
Inocência,
se nos fazia tão felizes,
por que a roubamos de nós?!

Os velhos truques do amor

Nas desavenças,
os velhos truques do amor:
aquela indiferença
que sem a atenção
e o favor do retruque
não vive um instante;
um olhar tão distante
que não sai a visão,
por nada no mundo,
do seu bem-querer;
aquela desatenção
sempre tão atenta,
sem esquecer um segundo
de deixar de atender;
todo aquele descaso
que, por mero acaso,
não consegue passar
sem criar, ao menos, um caso;
aquela frigidez brutal
ardendo de um jeito,
que faz dentro do peito
danos de primeiro grau;
a firmeza daqueles nãos
que sabe bem o coração,
afirmam muito mais
que a certeza de um sim;
e, por fim,
o “não te amo mais”
declarando mais amor
do que qualquer declaração
seria capaz!

Como seria bom!

Como seria bom
poder andar por aí
cheio de nada pra fazer,
de mãos dadas com aquela preguiça
que não cabe em foto 3x4,
com a cabeça leve
de quem não sabe
nem quer saber
da missa a metade,
e menos ainda do pátrio,
do mátrio poder,
andar por aí
como quem não tem mulher,
não sabe sequer
se deve o aluguer a alguém
e não tem nenhum vintém,
mas a rua paga em dia,
como seria bom
escancarar aquele bocejo
que as duas mãos
fazem questão de não esconder,
e sentar num canto de via
pelo simples desejo
de outro ponto de vista,
e olhar,
e ouvir,
e cheirar,
e sentir a natureza
com a sutileza do artista
e a pressa do vagabundo,
jogar conversa fora por horas a fio,
discutindo comigo mesmo
a influência do sexo dos anjos
naqueles marmanjos
que têm cio com freqüência,
e girar,
e pirar com esse mundo,
e em passos tão indolentes,
que ficar parado não seria diferente,
não quero muito,
gente,
de fato,
quero mesmo muito pouco,
só um dia por aí,
a esmo,
desocupado,
despreocupado,
exatamente como um louco!