terça-feira, agosto 02, 2005

Natureza-morta

De repente,
frente a frente,
cara a cara,
de pé no meio da sala,
logo após um jantar comum,
sem me dar sequer uma chance,
me disse sem rodeio
que era hora de acertar as contas,
tudo estava acabado entre nós,
ela ia embora
e as malas já estavam prontas;
não sorriu,
pra não me dar motivo pra sentir rancor;
não chorou,
pra não me dar razão pra sentir ternura;
me olhou e não me viu;
trazia no olhar
friúra de chofer de coletivo
que vê pelo retrovisor
o passageiro correndo desesperado
pra não perder a condução
e se adianta um segundo,
e, antes que ele a alcance,
dá a partida;
e fiquei no ponto,
tonto,
olhando o nada
como se fosse tudo na vida,
sentindo um gosto esquisito,
um sabor aflito
que eu não sabia que sentia
quem não vai mais aonde queria ir
e não sabe o que fazer,
sentindo um mal-estar estranho
para o qual,
sem saber a razão,
tinha certeza de que não havia elixir,
sentindo uma intensa vergonha,
como se o mundo todo estivesse ali
vendo meu amor fracassado;
não consegui dar um passo,
uma força mais forte
fizera cortes em mim
e meu corpo estava separado em pedaços,
e o sangue que saiu da ferida aberta no peito
não tinha cor definida,
me encheu um vazio absurdo
e me fez vagar no ar de um jeito bisonho,
como num sonho ruim;
fiquei louco porque não era surdo
e ouvi o que não queria ouvir;
não consegui dizer sequer uma palavra,
como se não houvesse no dicionário
uma só palavra adequada;
cometi um grave pecado,
não ter rezado nenhuma prece,
por achar que as orações
ensinadas pelos livros sagrados
não passavam de refugo inservível;
minhas mãos,
sob o jugo de um poder invisível,
procuraram ao léu bolsos imaginários
pra se esconder,
e não conseguiram encontrar;
e ela,
qual pintor
que não dá valor à natureza-morta
qua acabou de criar,
que joga fora pincel e aquarelas,
saiu e bateu a porta!