quarta-feira, julho 13, 2005

Não posso... mas vou negar

Não posso negar
que adoro o copo
pois topo beber um trago a qualquer hora,
aflora aquele brilho no olhar
quando a afago a loura e a branquinha
e elas estão cheias,
não posso negar!,
está nas minhas veias!;
não posso negar
que acho fidelidade um castigo,
mas,
entenda o que eu digo...
mulher de amigo,
pra mim,
é do sexo masculino,
entretanto,
se houver oportunidade,
meu lado feminino
sabe bem apreciar,
depois,
privadamente,
faz questão de se lembrar!;
não vou negar
que esqueço da hora e da vida
batendo papo,
jogando conversa fora,
que escapo de obrigação
pra ver meu time jogar uma partida
ou mesmo só treinar!,
não vou negar,
são meus crimes,
eu confesso
e não peço perdão!,
e, se você puder,
pode me condenar;
agora,
não me vá fazer intriga,
qual faz um leva-e-traz duma figa,
dizendo o que eu disse
à minha senhora,
e tem mais,
não adianta,
porque,
praquela santa,
eu sempre vou negar!

E agora?

As farpas ferem
com terrível agudeza;
as pedras machucam
com horrível dureza;
os espinhos agridem
com incrível bruteza;
queima o fogo e a água afoga;
mas está tudo por aí
sob as rédeas da natureza,
e nascimento, e vida, e morte!;
não criou o homem
farpas, pedras, espinhos,
nem cataclismos ou intempéries,
nem pragas ou epidemias,
os criou a natureza
e o fez sobreviver
às armadilhas e truques
que ela engendrou;
mas,
e agora?!,
que ele inventou
seus próprios venenos
e nem sabe,
ao menos,
quanto eles podem
ferir, machucar, agredir?!;
mas,
e agora?!,
que ele pensa
que subjugou o espaço?!;
mas,
e agora,
que ele pensa
que equacionou o tempo?!;
mas,
e agora?!,
que sua razão
perambula por labirintos
carentes de estrelas-guias?!;
mas,
e agora?!,
que glorifica seus instintos
em pobres relações frias?!;
mas,
e agora?!,
há quantos minutos
estamos da hora?!

Estou mentindo

Quero o absurdo
dessas noites de insônia,
tremendo de frio
e sonhando com ela,
quero a estupidez
dessas madrugadas,
delirando acordado
por horas a fio,
e pensando nela,
quero o pranto
e essa escuridão completa
ao sabor de canções
que me fazem recordar,
quero o amargor
desses cigarros fumados
na esperança de a fumaça
desenhar o rosto dela,
quero o dissabor
desses copos vazios
e aquela tentativa bêbada
de tomar o derradeiro porre,
quero o estertor
desse insaciável cio
enxarcando lençóis de seda
e que teima e não morre,
não!, não! e não!,
eu não quero!,
estou mentindo!,
não quero
nenhuma dessas coisas
que por loucura
tanto clamo,
quero tê-la de volta,
vê-la bater na porta,
entrar,
me abraçar, me beijar,
e me dizer sorrindo,
amor,
eu te amo!

Não passa o meu dia

Não passa o meu dia
de um agasalho precário
nos ombros de um bêbado
que bebeu seus escombros
no desvario da madrugada,
não passa o meu dia
de um sóbrio e tremido vazio,
miséria, clandestinidade,
um nada impróprio
espremido entre dois porres,
o que escorre de veias e artérias
e o que sempre se toma
quando a escuridão assoma
e apeia a claridade,
e por este a alma já anseia,
não passa o meu dia
de um traje transparente
jogado num canto do armário,
tão transparente,
que a gente sente vergonha
de se imaginar descoberta por ele,
não passa o meu dia
de uma ferida aberta
com o fio da sensatez
que mal medeia a embriaguez,
não passa o meu dia
dessa torrente de mágoa viva
e de saliva que encharca a fronha!

Só falta um detalhe

Rasguei o vestido
que ela esqueceu de levar
ao se mandar
com o marido da vizinha,
tirei e derreti minha aliança,
removi a fotografia da escrivaninha,
destruí bilhetes
e outras lembranças,
troquei a mobília da casa,
o tapete do corredor,
a cor das paredes
e retirei a rede da varanda,
enfim,
como manda a razão,
não deixei escapar
quase nenhum pormenor,
agi como se ela tivesse morrido
pra não dar asas à esperança
nem pensar em perdão,
e disse pra mim
que tinha sido o menor dos males,
que podia ter sido muito pior,
na verdade,
só falta um detalhe
pra acabar com a faxina,
apagar essa saudade
que me azucrina o coração!

Pássaro liberto

Pássaro,
asas sinuosas,
insinuantes
ao sabor do vento,
rutilante corpo irreal,
feito a bico de pena
em folhas de papel ideal,
vôos incongruentes,
frente ao inferno,
rente ao céu,
ave intensa em rotas difusas,
caminhos,
percursos controversos,
vai da água ao vinho,
do verso à prosa,
pousa em rosa,
parte espinho,
afaga a calma clara
do azul infinito,
quase toca a rara,
a branca paz,
e, de repente,
se torna aflito,
se agarra à bitola
do trilho vermelho em brasa,
se dissolve,
perde cor e brilho,
não sente a flor e passa,
se esgarça a trama, a urdidura,
quanto mais se abrem os vãos,
mais se fecha a clausura,
mais se engaiola,
mas,
na grade áspera se esfola,
se amola com afinco
e exorta outra vez a emoção,
e não há trinco na porta,
se reacende a chama e emerge,
voa veloz ao encontro
do encantamento do arco-íris,
novamente solto
é albatroz,
joão-pires,
bico-aberto,
pensamento,
pássaro liberto.

Meu lugar

O vale quieto
aprisionado pela serra
a sua volta,
mas a planície
mais solta da terra,
e tudo recoberto
pela meiguice dos tons
do verde,
do lilás,
do amarelo,
do vermelho,
do azul,
do branco,
do laranja...
e uma infinidade
de outras tonalidades e cores,
nas densas franjas
de folhas, frutos e flores,
aquela árvores
oferecendo sombras gentis
que o sol
com seus raios viris
nunca viola,
a água que rola
no escorrega da montanha
e cá embaixo,
depois da cachoeira,
num truque molhado,
brinca de rio
e os peixes banha
e dá de beber
a quem tem sede,
e pássaros moleques
em vôos traquinas
e fazendo um burburinho
que faz dançar a alma,
e bois,
e vacas
gulosas e calmas
sobre sua farta mesa,
e toda a nobreza dos cavalos
a cariciar o ar
com suas crinas
na cerimônia do galope,
e o melodioso canto do silêncio
cochichando pela madrugada,
e aquela fatia exclusiva de noite
no ceú demarcada
pelas pontas da serra,
com lua,
estrela
e tudo mais,
e a casa ribeirinha
plantada em função da cozinha,
do fogão à lenha
e sua chaminé,
e sem ter,
sequer,
um bocado fútil,
e prenha de mobília
rústica, útil, aconchegante,
e rede na varanda,
e o constante aroma de paz,
e ela,
toda minha,
ah!...,
e o galo
cantando de manhãzinha!

Da noite pro dia

No começo,
apenas uma aragem
arrepia a relva serena,
mas,
da noite pro dia,
viram furacão e selva,
e nos fazemos selvagens,
deuses e canibais
que se adoram e devoram
no altar da paixão,
ocultos pelo véu espesso
que esconde o céu
e desfaz os pontos cardeais,
e nos fazemos animais
que não precisam saber quem são,
nem quando,
como,
pra onde vão,
que se a vista não vê rumo,
a pista segue o faro,
se é raro o cheiro
e caduco o olfato,
a boca vai atrás do sumo,
se se apouca o suco
ou mais nenhum se segrega,
o tato fica a cavaleiro,
toca a mecha de mato a mão
e se abre a brecha,
sem corte,
sem ferida,
se o contato não é bastante,
à lida a audição se presta,
se nada mais resta,
nos leva adiante a intuição,
e nós vamos,
e estamos seguros,
na mata fechada e escura,
só nós dois,
eu preso em você,
você presa em mim
e libertos em nós,
e qualquer clareira,
um simples portão aberto
é aperto no peito e clausura,
então,
até canção das aves
tem jeito de tristeza,
mas,
de repente,
reagem,
rugem as feras,
leão, leoa,
e ecoa o rugido,
o apelo ressoa pela mata
e a mensagem chega aos pêlos
que se eriçam;
na vez das cobras,
se dobra a razão aos venenos
que nas veias se atiçam
e vão ao coração,
insegurança, ciúme,
do cume mais alto
ao vale mais profundo,
do riso ao pranto
a gente se lança
em menos de um segundo,
um salto,
se tanto,
tudo é incerto
e o tempo avança;
um dia,
sem aviso ou explicação,
calmaria e deserto.

Círculo estranho

Montado no ponteiro
que corre pelas horas,
lá vou eu
atrás do tempo
que escorre
por entre meus dedos,
e o próximo segundo
é o tal segundo
que não consigo desvendar!,
e o segundo que se foi
é o pedaço de um tempo
que nunca mais
vai voltar,
e por ironia,
por pura ironia,
me parecia
o caminho das horas
circular,
mas
quem circula sou eu
e por esse círculo estranho
que nunca me deixa
repetir um momento,
estar de novo
no mesmo lugar!

terça-feira, julho 12, 2005

É bem possível

Tempo... espaço...
régua... compasso...
faça a estrada
com seu próprio passo,
desenhe a figura
e use só o seu traço,
construa o inteiro
colando seus pedaços,
monte e desmonte
cada um dos segundos,
conte, reconte, desconte
o que quiser
descontar do seu mundo,
mas não esqueça,
é importante a cabeça
procurar novo horizonte,
e não se limite às três dimensões,
largura, comprimento, altura,
se quiser,
divida e multiplique,
some e subtraia,
mas não caia nessa arapuca,
não fique só
com essas quatro operações,
e não se bitole só pela vida,
que pode não ser vida
mas sala de espera da morte,
também não se restinja à morte,
que pode não ser morte,
mas sala de espera do renascer,
portanto,
não se deixe marcar tanto
por nenhum momento,
que pode
não ser começo nem fim,
mas mero prosseguimento,
e não se balize
só pelo átomo,
pois,
de fato,
não é átomo
já que é passível de corte,
nem pela matéria
ou pela antimatéria,
nem só pelo corpo
ou pela alma,
nem só pelo carma
ou pela aura,
ou pela encarnação,
desencarnação,
reencarnação,
nem só pelo que é humano
ou desumano,
terreno ou extraterreno,
científico ou não,
nem pelas coisas certas ou erradas,
nem pelo que é falso
ou verdade confirmada,
pois tudo isso
pode não ser tudo,
pode mesmo não ser nada,
não se restrinja a leste, oeste,
sul ou norte,
pois há outras direções,
não se prenda em demasia
à massa ou à energia,
pois pode ser
infinitamente maior a magia,
outra alquimia pode existir,
portanto,
não fique só nessa união
de tempo e espaço,
não acredite tanto
em régua e compasso,
pois é bem possível
não haver medida não.

Gaivota de papel almaço

Gaivota de papel almaço
leva ao espaço um poema sem-par,
“Beija-Flor”,
que rema no ar,
bate as asas ao sabor da rima,
escolta um desejo amor acima;
no caminho inverso,
desenha lábios doces,
como se fosse um pincel
e o ceú fosse a tela,
se aproxima o beijo na flor,
à colheita do néctar o toque dá ensejo,
e colhe e se solta;
faz a gaivota de papel almaço
mais uma volta no espaço
com sabor de verso,
poesia suave qual ave natural,
e dá asas ao sentimento,
enviesa a manobra,
dobra o vento,
se retesa e outra estrofe inicia,
se delicia com outro beijo o “Beija-Flor”!

Não há canto mais franco

Decerto,
não é o primeiro,
e espero
que seja o derradeiro,
mas é o meu,
o que eu tenho,
e cada um tem o seu,
e, asseguro,
venho de peito aberto,
sou de todo verdadeiro,
franco,
e não fico em cima do muro,
eu juro;
se não é sonho?!,
se ponho,
de fato,
o preto no branco
e os pingos nos is
de modo exato?!,
garanto que foi o que quis;
se falo por miúdo sobre tudo
que fiz e deixei de fazer
e não nada oculto,
se canto
e dou a nota,
o tom correto,
se conto cem por cento,
sem censura e sem veto,
e não dou vulto ao que não tem?!,
posso dizer que tento,
pois não fantasio,
não alivio nem aperto,
não diminuo nem aumento,
não faço drama,
trama intrincada,
nem conto de fada,
e o feito
foi fácil de conseguir
porque descobri,
meu amigo,
o jeito de fazer,
de não falsear nem mentir:
não dizer nada,
e nada eu digo!

Quando bem quis

Escancarou minha porta
sem permissão,
sem convite,
e entrou,
qual bandido,
ficou de tocaia na escuridão
e me acertou o peito,
me varou a alma,
me fez mortalmente ferido,
morto de paixão;
feito ladrão,
roubou meus limites,
minha paz,
minha calma;
qual feitor,
fez minha vontade morta,
ditou o brilho do meu olhar,
me virou do lado do avesso
e me fez amar,
gozar,
cantar,
dançar
e pedir bis
ao seu bel prazer;
quando bem quis,
esqueceu meu endereço
e foi embora,
me deixou
do jeito que estou agora,
incapaz de querer!

Mas, me disseram também

Me disseram
que você está mudada demais,
que já não é mais a mesma,
me disseram
que você não faz mais nada,
agora,
compra tudo feito,
e com cheque e cartão,
me disseram
que você já não ganha mais o pão
suando,
metendo o peito no batente,
que anda andando em frente
e nem olha pra ver
se vem gente atrás,
me disseram
que agora você se considera a tal,
não encara mais a Central,
a do Brasil,
nem vai mais àquele pagode em Cordovil,
me disserram
que você mora na Delfim Moreira,
chama palavrão
de palavra de baixo calão,
e não se satisfaz mais
dizendo uma besteira qualquer,
me disseram
que agora você aplica na bolsa,
come em louça importada,
tem chofer,
empregada,
não grita nem faz apelos quando goza,
não usa mais aquela rosa no cabelo,
me disseram
que você não lembra mais
que quase pariu nossa menina
numa esquina de Acari,
mas,
me disseram também
que você já não canta nem sorri!

E que o mundo se exploda amanhã de manhã

Se ainda te prezas,
eis a receita perfeita:
vira a mesa,
chega de tornos e fresas,
manda despesas,
imposto de renda
às calendas gregas,
esquece a poupança,
pois o gato comeu,
e comeu também
aquela lesa esperança
de carro e casa própria,
com financiamento
de véspera de eleição,
põe de lado essa reza,
que o santo nunca ouviu,
atira ao vento
essa tal vida sóbria,
e avisa as crianças
que se despediu
o Papai Noel,
antes que se aposentasse
caquético, patético, velho de fato,
vamos lá,
basta de 1º de abril,
fala à nega
pra deixar de mão
ferro, forno e fogão,
se meter no vestido
que sobrou das bodas,
nos adornos e balangandãs,
mesmo bregas,
e na água-de-cheiro,
aquela amostra grátis,
que ganhaste do patrão,
deixa de lado linha,
valor ético,
padrão estético
e desalinha os cabelos,
desabotoa a camisa,
mostra os pelos,
mete o peito na noite,
a noite é uma criança
que pede a tua mão,
corre, brinca, canta, dança,
toma aquele porre,
e que o mundo se exploda
amanhã de manhã!

Cantos das colheitas

Quando o fruto cresce,
amadurece
e, por fim,
enjeita o galho,
se espalha
o verso da natureza
no canto da colheita,
olha a mexerica no pé,
e framboesa,
e amora
e café,
olha a fé no trabalho,
a hora,
o tempo de colher,
que agora o peito encerra
o sorriso da terra,
cor,
odor,
o sabor do prazer
feito com amor e suor,
com as próprias mãos,
e sequer faltou oração,
além da esperança
que brota do solo,
só uma coisa é melhor,
o homem mais quer,
colher no colo
e cantar e ninar a criança
que semeou com a mulher!

Cantadores e violas marginais

Por cantos marginais,
de viola em punho
e de peito aberto,
lá vai o cantador,
cada palmo de chão, de emoção, de transpiração,
entrelaçado nas cordas,
laço apertado
que vem do coração;
com violas marginais,
dá testemunho
de um viver incerto e aberto,
cada palmo de mão, de devoção, de inspiração,
dedilhado pelas bordas
de dedos afinados,
faz cantar o coração;
e não importa
se não há platéia,
e não importa
se não há ovação,
cada nova nota
tem sabor de estréia,
que viola e cantador
cantam
pelo puro prazer das canções,
por isso,
cantam de sul a norte,
noite e dia,
aqui e agora,
e por todas as razões;
cantador e viola marginais
cantam toda sorte de mundo,
o mundo que nos amola
bem lá no fundo,
o mundo que aflora
e cantarola uma canção
que se chama Alvorada,
o mundo
que se esconde
sob as vestes de uma dama
chamada Escuridão;
cantam o mundo que ri
e o que chora,
o mundo cheio de si
que ignora aquele outro mundo
que roga, clama, implora;
cantam o mundo
que gera e acalenta,
trata, apascenta e acaricia,
e cantam o mundo
que atormenta, desespera e se droga
e suplicia, e mata;
cantam o manso e o ranço,
cantam o puro e dócil
e o duro, fóssil, amargurado;
cantam passado e futuro,
dor e amor,
rancor e paixão,
cantam o todo e a fração,
cantam tristeza e alegria,
e vão cantando a rodo
e por todos os cantos,
exorte o canto
a vida incerta que nos cerca
ou a certeza que nos cerca a morte!

terça-feira, julho 05, 2005

Dia sem alma

Mais um dia assim,
sem alma,
com esse pranto azedo,
esse medo
que arde dentro de mim
e me causa tantos traumas,
e choro,
deploro tanto
mais esse dia inválido,
esse sol pálido
que nega ungüento
às feridas da manhã,
esse meio-dia sórdido,
que se nutre
no mórbido prazer
de me oferecer esse vazio,
essa tarde malsã,
absorvida pelos ventos
de uma noite histérica,
esse sangue frio
da madrugada sanguinária,
que prenuncia a morte
de mais um dia,
mais um dia
dessa gente periférica
e solitária,
seminua e pés descalços,
entregue à sua sorte,
gente que arrua pelos guetos
com seus haveres parcos,
que o ter é assimétrico,
e com seus talismãs
e amuletos falsos,
e seus beberes tão amargos
e outros vícios bem mais tétricos,
mais um dia
em barcos inúteis,
que as velas vazias
não nos levam ao porto,
mais um dia
de doutores fúteis
em vestes alvas,
passando ao largo da peste,
do corpo quase morto,
de senhores macabros
que enchem o coração
com seus descalabros,
com esse branco pus
posto em salva de prata,
mais um dia
de tantos pastores
pregando essa fé barata
que ignora as dores da cruz.

Ave, Maria!

Triste-vida,
bem-te-vi,
o pituã pia,

só no fim do dia o jaó,
e insiste na nostalgia,
o que se há de fazer,
é assim o zambelê,

e o sabiá-laranjeira,
e a juriti,

na mata escura pia caburé,
mocho,
jacurutu,

mas,
inaugura a manhã
o canto encantador do uiramiri,
canta,
uirapuru,
que quem ouvir o teu cantar,
a sorte há de abraçar,

e trata da lida com melodia
a cotovia,
sabiá,
canário,
pintarroxo,

e o rol tem sabiá-do-campo, o plagiário,
corrupião, cujo canto
teria inspirado nosso Hino,
como o destino é curioso!,

bom,
tem mais o rol,
tem-tem,
gaturamo,
sabiá-preto, um dos mais sonoros,
peito-roxo,
curió cantador,
o canoro rouxinol
e a corruíra,

o colibri dá muxoxos,
e a torto e a direito,
é o beija-flor,
e bem podia ser beija-Chatô!,

as andorinhas são a voz do verão,

e pesca o atobá, e garça, gaivota, batuíra,
pelicano, o pescador martim,
o albatroz, no meio do oceano,
o fura ou vira-buxo,
que se deu ao luxo
de dar boas-vindas ao lusitano,

o tico-tico não nota
e adota o filho do chupim,
o astuto engana-tico e nem disfarça,

a pega cata o que tem brilho,
de um ladrão dizem que se trata,

no fruto o nhapim mete o bico,
e sanhá,
sanhaço,
cambacica,

e bica o grão e a semente a coleirinha,
e bico-de-lacre,
rexenxão,
rolinha,
e pintassilgo,
arara,
pardal,
que se aninha no quintal
e não se separa mais da gente,

e a pardoca raramente come inseto,
que do sabiapoca é o prato predileto,
e na escolha do caminheiro o primeiro,
e também do vira-folhas,
e do guedé,
tapicuru,
surucuá,
e do manimbé,
mucuru,
batará,

o maçarico-de-coleira, curioso,
como é nervoso,
vive às carreiras e pára de repente,
busca alimento,

é batimento de ferro em bigorna
o som de ferreiro e gralha,
tão estridente,
que se torna aflitivo,
bem,
têm lá as aves seus motivos,

já o canário-da-terra,
e da-terra pra diferençar
do que veio de além-mar,
canta suave porque sabe cantar,

e tem pixarro,
anu,
japu,
trinca-ferro com bico forte,

na moradia o joão-de-barro
trabalha e vigia,
pois não se fia só na sorte,
que o tuim é intrujão,
o tucano rapina
e os rapaces não são fáceis,
gavião,
harpia,
japacanim,
murucutu,
e, por fim, a faxina é do urubu,

o urutau e o viruçu são mestres em disfarces,

o faisão parece o tal,
também,
é uma beleza,
e, na mesa,
que maravilha,

e da família é o galo,
tem crista,
é bom de rinha
e o artista da cama nos apeia,

sua dama é a galinha,
que na manja faz sucesso,
dá caldo,
canja
e molho pardo,

e resta o peru,
que guardo pra festa,
pra ceia,
e, antes da hora,
encho de pinga,
e há, ainda, os afins,
cujubim,
mutum-açu,
jacu,
jacutinga
e arancuã,

mais pato e marreco,
pares perfeitos do purê de maçã,

e faz feito eco o ajuru,
ajurucatinga,
jurueba,
ajuruetê,
papagaia tudo que falo,
de quebra,
papagaia você,
só se cala o anacã,
e sequer sei o porquê,

tem o belo azulão ou azulinho,
cor de céu e mar,

todo negro o xexéu,
joão-conguinho,

e o cardeal-amarelo,
cardeal-de-montevidéu,

o pica-pau não é um só não,
vai do grande ao anão,
e tem chanchão,
birro-branco,
benedito,

e não fica atrás o periquito,
é tuixiriri que não acaba mais,
mas o rei é a jandaia,

da-praia tem saracura,
bacurau,
vedeta,

e mais sabiá,
que livre é mau cantor,
cativo sabe cantar,
mas não é canto,
é pranto,
melancolia,
que só dor a clausura dá,

e entre as aves tinha que ter maria,
e a crença, a cor, não faz diferença,
é maria-preta,
branca,
mulata,
pretinha,
maria-judia,

e tem mais marianita,
marianinha,
mariquita,
maria-já-é-dia,
é-dia, maria,

e vem maria-faceira,
rendeira,
cavaleira,

e fica maria-besta,
maria-caraíba,
maria-com-a-vovó,

e não é só,
não pára por aí,
tem maria-de-barro,
maria-lecre,
mariangu,

mas vai indo,
vai indo
e fica maria-velha,

mas,
Maria tinha que ter.
Ave, Maria!

Atire a primeira pedra!

Tantos prismas e cismas
por todos os lados,
sofismas por todos os cantos,
difundidos, exaltados,
carismas produzidos
por rádios, tevês e jornais,
e há muito mais nessa lista,
fantasmas, cinismos, espantalhos,
alhos misturados com bugalhos
por magos, doutores, artistas,
às vezes,
tudo parece tão fictício,
que a gente pasma,
pra suportar,
haja batismo, crisma, e outros sacramentos!,
mas,
mesmo assim,
a qualquer momento,
a gente se abisma nos precipícios diários,
nos santos enganos de cada dia,
a gente passa do ponto,
tonto com tanta alquimia,
e nem desconfia da própria tontice,
a gente se diz proprietário da verdade,
e, na realidade,
diz uma bruta sandice,
indício de ortodoxia, quiçá oligofrenia,
a gente faz papel de otário,
pensando estar sendo sagaz,
demais a gente insiste
e por pura insistência, mera teimosia
ou por loucura somente,
demência não tão incipiente assim,
a gente se vê em palpos de aranha,
pondo em risco o escalpo,
por tolice ou coisa chinfrim,
a gente se arranha nas arestas do cotidiano,
a gente se presta a algum papel ridículo,
a gente anda, percorre um círculo,
mesmo um segmento,
e afirma que está numa reta cem por cento,
a gente da vida apanha,
em público ou por baixo do pano,
a gente entra pelo cano,
se engana com um amor,
com um amigo,
até mesmo com um inimigo,
a gente medra,
sente pavor
de pecados novos ou antigos,
de um só que seja,
que não quer que o outro veja,
se com você não é assim,
atire a primeira pedra!

Amor pela metade

Nos agita
a viva vontade da madrugada
e nos devoramos avidamente,
és a fêmea que mereço,
sou o macho de que necessitas,
misturamos saliva e suores,
temos os melhores prazeres,
teus sabores me tomam a pele,
a tua, meus odores,
somos seres transversos, inversos,
pelo avesso,
e saciamos desejos
sem que a boca os revele,
que não se livra do beijo,
repentinamente,
a noite some
e não nos poupa a luz do dia,
deixa à deriva os Dráculas,
almas vazias, sem sangue nas veias,
inertes como roupa espalhada pelo chão,
não lembro teu nome e não sabes o meu,
antes que as máculas da peste
contagiem o que restou de nós,
nos lavamos com sofreguidão,
e o cheiro é tão acre, tão atroz,
que já não respiramos,
quase asfixiados
botamos nossas vestes
e saímos sem sequer dizer adeus.

À tua espera

Fico bravo
com o cravo na janela do teu quarto
que se encastela nos teus braços
quando vens olhar a rua
com olhos que enfeitiçam os astros,
sinto ciúmes
desse vento que te envolve,
revolve e dá laços fartos em teus cabelos,
brinca com teus pelos,
acaricia tua pele,
e me impele a seguir o rastro de perfume
que exalas e deixas quando passas,
espreito a flor
que ao teu lado não tem graça
e implora o carinho de tuas mãos,
aspira ser enfeite em teu peito
e confidente do teu coração,
observo o fruto atrevido e dissoluto
que teus pés beija,
a ti se oferece
e deixa tua boca ávida,
espio a ave
louca com teu encanto,
que pia ao teu ouvido o canto de amor
que tanto tenho querido cantar,
vejo maio
se curvar diante da tua primavera,
testemunho o Sol rubro de paixão
que desafia a escuridão pra te ofertar seus raios,
e a revolta da Lua
que não esconde seus ciúmes,
e descubro
que uma quimera me resume,
viver à tua espera!