terça-feira, agosto 02, 2005

Carta a meu Rei!

Meu Rei,
ah...
meu Rei,
sei que não te falei
das muitas dores do teu reino;
meu Rei,
ah...
meu Rei,
sei que não critiquei
os teus amores mais obscenos,
e foram tantos,
e por todos os cantos;
meu Rei,
ah...
meu Rei,
sei que não te passei
os sabores dos teus venenos;
meu Rei,
ah...
meu Rei,
eu sei que te poupei
dos rigores de dias não amenos;
de tudo isso,
meu Rei,
eu sei,
sei muito bem;
mas,
meu Rei,
que podia eu fazer?,
se sabia
que estavas cego e surdo,
se cotidianamente te via
distante e mudo,
se parecias alheio a tudo
todos os dias,
se te surpreendia sempre,
meu Rei,
distante e vago,
se te descobria sempre
ignorando os estragos,
agindo como se teu reino
fosse um manso,
um calmo lago
a refletir só os raios de luz;
mas,
meu Rei,
quero que saibas que me cansei
de carregar a nossa cruz,
de manter teus súditos
famintos e nus,
escravos sob a mira do teu arcabuz;
mas,
meu Rei,
quero que saibas que me cansei
de tanto pedir perdão
aos pés do Menino Jesus;
meu Rei,
ah...
meu Rei,
saiba,
também,
que por tudo
que sempre te dei,
pelo muito que te dediquei,
pelo absurdo que a ti paguei,
pelo tanto que diante de ti me curvei,
meu Rei,
nunca,
nunca mais,
jamais nos perdoarei!,
e,
para ser franco,
meu Rei,
botando o preto no branco,
te servi,
te bajulei,
me submeti,
me entreguei,
mas nunca,
nunca mesmo,
meu Rei,
eu te amei!,
quero que saibas,
“meu mui querido
e amado Rei”,
que assim sempre te chamei
porque assim fazia todo o reino,
mas te detestei,
te odiei todo o tempo,
senti desprezo,
nojo,
asco,
senti repulsa,
repugnância,
e muito,
muito mais,
e até vomitei,
vomitei sim,
e um vômito sem fim,
“meu mui querido
e amado Rei”,
com o fedor da tua ganância,
com a gosma infecta
que revestia a tua arrogância,
com o ranço da tua egoísta abundância,
com o fartum da tua insolente ignorância,
com o bodum da tua ignominiosa petulância;
mas um dia,
“meu mui querido
e amado Rei”,
quando estiveres dormindo
teu injusto sono
em teu quarto real,
ou estiveres exibindo
teu inexplicável cansaço
esparramdo em teu augusto trono,
ou estiveres gastando
todo esse teu inservível tempo
com as bobagens e tolices do Paço,
e fores vítima de teu próprio punhal,
e tiveres soberanamente sangrado,
e estiveres realmente morto,
“meu mui querido
e amado Rei”,
chorarei e lamentarei
suditamente sobre teu corpo,
e sabes a razão,
“meu mui querido
e amado Rei”?,
chorarei e lamentarei suditamente
porque é de praxe
chorar e lamentar assim
por El Rei morto!,
e mandarei,
“meu mui querido
e amado Rei”,
que se hasteiem a meio mastro
todas as bandeiras do teu reino,
ordenarei
que se toquem todos os clarins,
se rufem todos os tambores;
e sobre teu corpo,
“meu mui querido
e amado Rei”,
colocarei teu brasão,
tua bandeira,
tua espada,
teu escudo,
colocarei tudo,
todos os símbolos da tua coroação,
colocarei tua vida inteira,
e sabes a razão,
“meu mui querido
e amado Rei”?,
porque é de praxe
elogiar e glorificar
El Rei morto!,
mas,
“meu mui querido
e amado Rei”,
Rei morto,
Rei posto,
e, por isso,
te manterei exposto,
para que todos
pelo menos sintam o imenso gosto,
para que todos
tenham ao menos o magnífico prazer
de ver El Rei morto;
e quando os vermes,
“meu mui querido
e amado Rei”,
tiverem consumido tua epiderme,
tua derme,
toda a tua pele,
todas as tuas entranhas,
como fazem
com qualquer reles mortal,
e quando teus ossos
estiverem todos aparentes
e calcinados pela cal,
e quando o cheiro horroso
tiver humanamente findado
e todos de ti supremamente esquecidos,
pois libertados,
então te enterrarei
como os indigentes são sepultados,
mas,
mesmo assim,
depois de todo o teu completo fim,
“meu mui querido
e amado Rei”,
não me terei redimido
de todos os nossos pecados!