terça-feira, agosto 02, 2005

Esse dom

Esse dom é bom
e faz muito bem,
e só você tem,
flor,
esse dom de florir
a lapela de um dia
que de açoite se veste de noite,
esse dom de florir
uma bela madrugada
alumiada por um grande amor,
esse dom de florir
a apatia do teto
no dissabor da cela renhida,
esse dom de florir
um quarto forte,
resistente às agruras lá de fora,
esse dom de florir,
insitente e farto,
seja qual for a hora,
seja a do parto, seja a da morte,
esse dom de florir
o cinza concreto
de um beco que não tem saída,
esse dom de florir
solos doentes e mudos
num mundo surdo, absurdo e ranzinza,
esse dom de florir
um ser opaco e miúdo
num colo evanescente e seco,
esse dom de florir
um copo desolado
num fundo de poço esquecido,
esse dom de florir
um galho apático
de uma árvore indigente e triste,
esse dom de ter a medida certa
pra florir o dedo em riste
e a mão aberta, estendida,
esse dom de florir,
flor,
um instante raro
e um momento comum,
esse dom de florir
o de todo claro,
o enigmático
e o de todo escuro,
o puro e o maculado,
o lodo e o jardim,
esse dom de florir
o dito duro, sério,
e o chiste puro,
a lembrança do passado
e a esperança no futuro,
esse dom de florir
o bonito, o feio,
o melhor, o pior,
o suor do calor, o tremor do frio,
e o vazio, o incompleto e o cheio,
aparentemente repleto,
sem lugar pra mais nada,
esse dom de florir,
flor,
o medo e a coragem,
esse dom de florir,
flor,
a imagem,
esteja onde estiver,
no terreiro, na capela, na viela,
esse dom de florir,
flor,
palácio e morada singela,
riqueza e necessidade,
felicidade e mágoa,
que seu mister é florir,
e, pra florir você,
flor,
fiz buquê com outra flor,
a “última flor do Lácio”.