quarta-feira, abril 13, 2005

Culpa do terreno baldio

O que posso fazer,
a vida me tornou antigo,
por sorte,
disponho da lembrança
que carrego comigo,
a criança,
ser que virou sonho,
e o terreno baldio
daquela rua da Zona Norte,
numa certa manhã,
sem alarido, sem gritaria,
pulamos o muro,
uma tosca divisa,
e não havia cachorro
nem lá estava o dono
pra nos dar esporro e corrida,
e não havia outro perigo,
improvisadas as balizas,
inauguramos nosso estádio,
ouvindo no rádio a gaita do Ary,
que, aliás,
tocava bem perto dali,
era logo ali o Marcanã,
e a bola de meia, de borracha ou de couro
rolou e rolou e rolou,
e só parou
quando chegou o progresso,
certa vez,
foi chutada ao céu
por um chute esquisito
que deu o dono da bola,
sem ele não havia racha
e o garoto não queria ser goleiro,
no regresso,
acaso puro,
não tirou fruta do pé,
manga, goiaba, carambola,
não fez furo
em algum bonito vitral,
nem foi parar
no quintal da Dona Mimi solteira,
pois havia a casada,
gente muito fina
e mãe da Gisela,
a menina mais cobiçada,
aquela, a solteira,
megera de carteira assinada,
por alguma razão
que só Freud sabia qual era,
fazia coleção de bola de futebol
e só devolvia a mais fuleira já rasgada,
mesmo assim,
só no dia de Natal,
só nesse dia,
ela sorria...
dessa vez,
a bola caiu em cima de um moleque,
ele deu um jeito
e matou a bola no peito,
do peito levou ao chão
com classe e estilo,
no chão,
deu um drible desconcertante
e um passe perfeito,
coisa de craque recém-nascido,
esguio e elegante,
se tivesse ido adiante,
seria um Didi, um Ademir da Guia,
só neles igual elegância eu vi,
e havia baldios espalhados por aí,
eram campo, sede e concentração,
havia pelada
até na escuridão,
por isso,
vinham craques de todos os lados,
de muitos craques fui fã,
culpa do terreno baldio,
mas,
hoje em dia,
com tanta construção
e cabeça-de-bagre cheio de banca
jogando de tamanca e à bangu,
e o time na retranca,
com tranca, corrente e tudo mais,
só milagre é capaz
de acabar com a nostalgia,
só milagre
é capaz de preencher esse vazio
maior do que o do Maracanã
em dia de Fla-Flu!